FINAL DOS ANOS 70 – Ultrapassando Muralhas SEM Preconceitos.

Primeiro Papai Noel Negro do Estado de São Paulo, final dos anos 70 – relato histórico

FINAL DOS ANOS 70 – Ultrapassando Muralhas SEM Preconceitos.

Relato pessoal e histórico sobre o surgimento do primeiro Papai Noel Negro do Estado de São Paulo, no final dos anos 70, em São José do Rio Preto, em uma ação solidária marcada por dignidade, inclusão e memória.

Compartilhar

PREFÁCIO

“FILHO DE PEIXE, PEIXINHO É!”

Relato pessoal, com imagens reais, do Primeiro Papai Noel Negro do Estado de São Paulo, no final dos anos 70, a desfilar publicamente, saindo do centro de São José do Rio Preto rumo à periferia, na única favela existente na época.

Algumas pessoas que aparecem nas fotografias já faleceram.

Senta… que lá vem históriaaaa… 📖✨


CAPÍTULO 1

Meu pai, minhas raízes SEM preconceitos

Arnaldo, carinhosamente chamado de Nardo, meu pai, era o filho caçula de doze irmãos. Um homem profundamente religioso, Filho de Maria, participante ativo da Congregação Mariana e devoto de vários santos.

Ambas as famílias, tanto a dele quanto a da minha mãe, descendentes de europeus, todos católicos. Porém, como acontecia em grande parte da sociedade brasileira naquela época, carregavam valores e comportamentos racistas e preconceituosos, considerados normais pelos padrões sociais e culturais dominantes do período.

É importante lembrar que o Brasil vivia um tempo em que atitudes preconceituosas eram naturalizadas e, muitas vezes, reproduzidas sem reflexão. A sociedade carregava heranças culturais, sociais e religiosas que reforçavam desigualdades e discriminavam pessoas negras, e isso aparecia dentro das famílias, das escolas, das igrejas e de praticamente todos os ambientes da época.

Ninguém discutia racismo ou igualdade racial como fazemos hoje. O tema não era debatido. Não havia legislação de proteção nem políticas educativas. As pessoas apenas repetiam comportamentos transmitidos ao longo das gerações.

Por isso, quando menciono o racismo presente nas famílias de meus pais, não o faço para julgar indivíduos específicos, mas para retratar fielmente o contexto histórico em que cresci. Era um padrão estrutural, aceito socialmente, silencioso e profundo.

E foi dentro desse cenário que meu pai se tornou ainda mais extraordinário. Ele caminhava na contramão dos costumes da época. Via o mundo pelos olhos da humanidade, da igualdade e da dignidade. Suas escolhas — firmes, serenas e inegociáveis — moldaram minhas próprias raízes.


CAPÍTULO 2

As viagens, os aprendizados, o presente surpresa e um grande segredo

As viagens ao interior do Estado, faziam parte da nossa vida.

Além das entregas de carros, havia momentos encantadores que marcaram profundamente minha infância.

Que gostosura era quando nos hospedávamos no Hotel Itamarati. Diferente da nossa casa em Santo André, onde só havia chuveiro, o apartamento do hotel tinha uma grande banheira. Quanto brinquei ali com minha amada mãe durante os banhos e, depois, com minhas irmãs mais crescidas. Era um ritual de carinho e alegria, gravado na memória.

A estrada para Rio Preto que parecia não ter fim

Naquela época, a Rodovia Washington Luís era de pista simples. Saíamos de madrugada de Santo André e só chegávamos a Rio Preto no final da tarde.

Eu olhava a estrada sem fim, lavoura de um lado, lavoura do outro, gado ao longe, cavalos, casas de colonos, sedes de fazendas, e perguntava:

“Pai, falta muito para a gente chegar?”

E ele respondia:

“Filha, vai olhando o céu, as nuvens, as árvores. Logo chega Rio Preto.”

E Rio Preto nunca chegava.

Fazíamos sempre as mesmas três paradas para verificar o combustível dos veículos, ir ao banheiro, comer alguma coisa e esticar as pernas. Depois, já maiorzinha, eu lia as placas e tentava calcular o tempo por quilômetro.

O rádio ficava ligado. Ouvíamos as músicas da época. Ele e minha mãe cantavam juntos. Às vezes, só chiados. Quando meu pai desligava o rádio, minha mãe cantava e nós a acompanhávamos, tentando diminuir a ansiedade de chegar ao destino que tanto amávamos.

A Gruta de Mirassol, minha primeira sala de aula

Quando as viagens coincidiam com o mês de março e a Festa de São José, após o café da manhã íamos à Gruta de Mirassol, mais tarde chamada de Grota de Mirassol.

Passávamos o dia inteiro ali. Até o almoço era feito no local, em um restaurante belíssimo, com vista para o centro da Gruta, água em abundância, mata nas laterais, árvores, orquídeas nativas e pássaros raros.

Foi ali que aprendi minhas primeiras noções de Matemática. Não em carteira escolar, mas recolhendo folhas, contando pássaros, formando montinhos iguais, somando, dividindo e classificando.

A NATUREZA FOI A MINHA PRIMEIRA PROFESSORA.

A Festa de São Pedro

Ano após ano, quando as viagens coincidiam com a Festa de São Pedro, saíamos do hotel à noite. Assistíamos à tradicional queima de fogos que se abria na roda-gigante, revelando a bandeira de São Pedro à meia-noite.

Com o passar dos anos, minhas irmãs mais novas não aguentavam ficar acordadas. Depois de brincarem na praça, assistirem aos shows em um lindo coreto que existia ali e comerem as gostosuras da festa, dormiam no banco de trás do carro.

Do lado de fora, em pé, vibrando com tudo aquilo, estavam meu pai abraçado à minha mãe e eu. Era um espetáculo que permanecia guardado no coração.

Esses momentos formaram a consciência social que me acompanharia por toda a vida.

O fusca vermelho e o medo que paralisou

Na minha pré-adolescência, minha mãe ganhou um lindo presente surpresa de meu pai: um fusca zero quilômetro, vermelho.

Um dos motoristas negros chegou em casa todo sorridente para entregar o carro. Meu pai nos chamou para mostrar a surpresa. O veículo estava estacionado na garagem, na diagonal, ao lado do carro dele. Minha mãe amou e eu também. Ele contou que o valor da autoescola já estava pago e que ela precisava aprender a dirigir para nos levar para cima e para baixo.

Ela seria a primeira mulher da família a dirigir.

Infelizmente, na mesma semana, uma amiga dela e vizinha de rua, foi atropelada e morreu praticamente diante de seus olhos. O trauma foi tão grande que minha mãe nunca mais entrou no fusca, nem mesmo para ligá-lo, apesar dos incontáveis pedidos de meu pai.

O carro ficou anos parado, com os pneus grudados no chão.

A doença que ninguém sabia

Eu, a filha mais velha, acompanhava meus pais em tudo.

Passamos a ir frequentemente a São Paulo. Enquanto minhas irmãs iam para a escola, eu e minha mãe entrávamos no carro com meu pai para o que ele chamava de passeios.

Na verdade, eram tratamentos médicos, descritos por ele como simples banhos de luz. Ele dizia que, para o caso dele, a clínica em São Paulo era melhor que em Santo André. Assim seguíamos, nas datas previamente agendadas.

O tempo passou, sua saúde piorou, ele foi internado e faleceu repentinamente.

Foi um choque devastador.

Nesse interim, meus tios descobriram, por meio de um médico amigo do meu pai, que há um certo tempo, ele tinha sido dignosticado como tendo “doença ruim”, como era chamado câncer antigamente. O médico havia sido proibido por ele de contar a verdade. Todas as vezes que íamos para São Paulo não eram para “banhos de luz”, mas para radioterapia, numa época em que os tratamentos ainda eram experimentais e causavam efeitos severos, atingindo inclusive células saudáveis.

Meu pai decidiu sofrer sozinho para não desesperar a família.

O susto no porta-luvas

Dias depois, durante o inventário, meus tios que estavam auxiliando minha mãe, foram verificar o fusca.

Notaram algo estranho. O porta-luvas tinha uma fechadura.

Chamaram um chaveiro. Dentro, encontraram um envelope fechado com timbre de cartório. Ali estava registrado que meu pai proibia os médicos de revelarem sua verdadeira doença.

Tudo foi confirmado no cartório. Ele deixou documentos com diferentes médicos e escondeu uma via dentro do fusca, sem que minha mãe percebesse a visita do chaveiro.

Todos ficaram em choque.

O conselho dos tios

Após sua morte, meus tios, irmãos de meu pai, assim como os irmãos de minha mãe, sugeriram que nos mudássemos para o interior. Diziam que seria mais fácil para ela criar três filhas meninas fora da Grande São Paulo.

E assim, sem querer e sem escolher, começava uma nova fase da nossa vida.

Enquanto eu, a filha mais velha, ainda uma jovem adolescente, o tecer da vida transformou-me em adulta num piscar de olhos.

A mudança de Santo André para São José do Rio Preto foi feita em caminhão de transportadora.

O carro zero quilômetro que minha mãe havia ganhado de presente anos antes, e que nunca fora usado, foi vendido e entrou no inventário.

O carro de meu pai, um TL vermelho praticamente novo, veio dirigido por um dos meus tios, marido da irmã caçula de meu pai, que antes de ser cunhado dele era primo-irmão de minha mãe. Ele aproveitou a viagem para conhecer nossa nova casa, permaneceu alguns dias conosco e retornou para Santo André de ônibus.

Nossa residência ficava na Rua General Glicério, ao lado do antigo SÉ Supermercados, que mais tarde seria adquirido, demolido e ampliado, tornando-se o Pão de Açúcar da Redentora.

Final dos anos 70. Ao lado do SÉ Supermercados, outra história começava a ser tecida por nós.


CAPÍTULO 3

MINHAS RAÍZES FIZERAM BROTAR O PRIMEIRO Papai Noel Negro do Estado de São Paulo

Relato pessoal, com imagens reais.
Algumas das pessoas que aparecem nas fotografias já faleceram.
A última delas, uma grande amiga, partiu durante a pandemia de Covid-19.
Na imagem, ela aparece sentada no capô do TL vermelho, no canto esquerdo.
Eu estou sentada do lado direito da imagem.

Desde que nos mudamos para o interior, após completar a maioridade, dois fatos marcantes aconteceram em minha vida. Tirei minha CNH e fui contratada pelo Banco Brasileiro de Descontos, BRADESCO, para trabalhar no Centro de Processamento de Dados, conhecido como SUBCENTRO.

Meses antes do Natal, eu e minha mãe fizemos um combinado. Com base nas novas amizades feitas em São José do Rio Preto, pesquisamos locais onde poderíamos levar pequenos presentes às pessoas em situação de maior vulnerabilidade social.

Com os locais já definidos, numa sexta-feira, viajei sozinha para São Paulo, de ônibus da Viação Cometa, exclusivamente para comprar uma fantasia de Papai Noel. Naquela época, nenhuma loja de Rio Preto vendia esse tipo de roupa.

Comprei uma fantasia maior que o meu manequim. Para simular a barriga, minha mãe prendia em mim um travesseiro com uma faixa. A barba era a mais realista disponível na época.

A partir da segunda quinzena de dezembro, eu me vestia de Papai Noel para levar doces que eu e minha mãe comprávamos, dando continuidade a um trabalho solidário que meus pais sempre fizeram, desde quando eu me conheço por gente, até o falecimento do meu pai e nossa mudança para o interior.

Em Rio Preto, visitávamos idosos que residiam no Lar São Vicente de Paulo, anexo à Igreja da Maceno, e o ALARME, Instituto originalmente denominado Consórcio Intermunicipal da Alta Araraquarense para Assistência aos Menores, que abrigava crianças e adolescentes do sexo masculino em situação de risco social.

Até que, em um belo Natal, os meninos do ALARME perceberam que eu usava botas femininas. Descobriram, então, que o Papai Noel era uma mulher.

No ano seguinte, em meados do ano, enviei um ofício via fax à Diretoria do BRADESCO, explicando meu desejo de ampliar a ação. Solicitei autorização para arrecadação de doações no comércio central de São José do Rio Preto e para sair em carreata, partindo da agência nova do banco, rumo à única favela existente na cidade naquele período.

Pouco tempo antes, o SUBCENTRO havia sido transferido do bairro da Ercília para o último andar do prédio novo do banco, em frente ao Fórum.

A resposta da Diretoria foi rápida. Além de autorizarem, parabenizaram a iniciativa e informaram que enviariam camisetas para todos os participantes.

Passei a contar com a solidariedade e o engajamento dos meus colegas de trabalho do Centro de Processamento de Dados. Começamos uma grande mobilização junto ao comércio central da cidade.

Visitei pessoalmente a favela e, após conhecer a realidade da população, escolhi cuidadosamente quem convidaria para ser o nosso Papai Noel.

Convidei meu amigo Djalma.

Ao ouvir o convite, ele respondeu assustado:

“Lili, eu sou preto. Isso não pode ser. Você precisa chamar outro menino.”

Olhei firme para ele e disse:

“Djalma, eu sempre acreditei em Papai Noel. E não só nele. Sempre acreditei em São Longuinho, no Gasparzinho, o fantasminha camarada. Desde quando Papai Noel tem cor? Isso é invenção dos brancos! Papai Noel é de todas as cores. Basta você acreditar.”

E continuei:

“Você precisa sentir orgulho da sua cor. Olha tudo o que você faz pela sua mãe desde que seu pai faleceu. Quantos homens brancos ignoram as próprias mães? Pense. Se, quando você era criança, tivesse visto um Papai Noel da mesma cor da sua pele, como teria se sentido?”

Ele respondeu:

“Eu sempre achei que Papai Noel, por ser branco, esquecia da gente por sermos pretos.”

Então eu disse:

“Imagine a alegria das crianças. Eu estive lá. A alegria não será só delas, mas também dos pais e dos idosos. Você fará a diferença.”

Djalma pediu um tempo. Disse que responderia até o fim do expediente.

Mais tarde, aproximou-se do vidro do meu setor, bateu levemente para chamar minha atenção, entrou e disse:

“Lili, chefia, eu aceito. Eu serei o Papai Noel.”

Levantei da minha mesa imediatamente, transbordando de alegria ao ouvir a resposta. Contei aos meninos do meu setor que ele seria o nosso Papai Noel. Em seguida, fui até o setor onde ficavam os meninos da conferência dos boletos e das duplicatas e anunciei, vibrando:

“Ebaaaaa! O Djalma será o nosso PAPAI NOEL!”

Todos aplaudiram. Ele ficou inicialmente tímido, mas seus olhos brilhavam de satisfação.

Ele foi até minha casa para experimentar a roupa. A fantasia, a barba realista e o sino vieram todos de São Paulo. O “ho, ho, ho” dele era impecável.

Nossa sala ficava tomada de doações até o teto. Bonecas, carrinhos, doces.

Trabalhávamos à noite. Outros amigos ajudavam durante o dia. Todos se uniam para separar e embalar os presentes, um a um.

O Papai Noel ficou lindo.

Final da década de 1970: carreata do primeiro Papai Noel Negro do Estado de São Paulo, com apoio do BRADESCO, levando presentes às crianças da única favela de São José do Rio Preto na época.
Final da década de 1970. Carreata do primeiro Papai Noel Negro do Estado de São Paulo, levando presentes às crianças da periferia de São José do Rio Preto, com apoio do Bradesco.

Saíamos em carreata do banco, percorrendo o centro da cidade rumo à periferia, nas proximidades do Córrego da Piedade, hoje conhecido como Córrego da Piedadinha.

A alegria das crianças e das famílias era impossível de descrever.

Foi assim que, no final dos anos 70, a população central de São José do Rio Preto viu, pela primeira vez, um Papai Noel Negro desfilar publicamente.

Do segundo Natal em diante, as doações foram tantas que não cabiam mais nem na nossa sala. Minha mãe orientou que os donativos fossem colocados num corredor da casa. Depois, nem nos carros cabiam mais.

Um empresário amigo levou seu próprio veículo e participou da carreata, carregado de presentes.

Enquanto todos perguntavam:

“Cadê a Roseli? Cadê a Lili?”

Eu me escondia atrás de um dos carros, chorando de emoção, tomada pela alegria de ver a felicidade daquele povo.

O primeiro Papai Noel Negro do Estado de São Paulo surgiu no final da década de 70, no Noroeste Paulista, a partir do Centro de Processamento de Dados do Banco Brasileiro de Descontos, do SubCentro do BRADESCO, no prédio novo recém-inaugurado em São José do Rio Preto.

Filho de peixe, peixinho é.

Roseli Maria de Cuzzo Cury

Compartilhar

Receber as Novidades do Site:

    Copyright @2025, colcursosonlineprof.com.br Todos Direitos Reservados.